Daniel Baima
“Tenho nada a dizer, ainda assim, digo.”
Assim começa um dos minicontos de Fugas – Pausas e Desatinos. Este livro de pensatas em forma de narrativa tem muito a dizer, ao nos transportar bruscamente a instantes da realidade íntima de personagens ao mesmo tempo únicos e universais. Sem pedir licença, adentramos o quarto, a sala, o trabalho, a mente de irreais pessoas reais.
Engana-se o potencial leitor que ache que a brevidade dos textos fará com que a leitura seja rápida: na frenética mudança de cenas, por vezes há que se parar para refletir, indagar, imaginar, vivenciar, sorver, ser aquela personagem. “Ser é um ato de rebeldia de beleza inegável. Ser dá trabalho.”
Segundo a escritora irlandesa-britânica Elizabeth Bowen, “toda ficção é obrigada a ser autobiografia transposta”, apesar do esforço do ficcionista de “derrotar o reconhecimento ordinário” (tradução livre). Apesar da camuflagem criativa, é possível identificar Carla Dias falando de Carla Dias, como quando ela se revela no “contador de tragédias, administrador de dúvidas, historiador de misérias, desenvolvedor de esquemas”. Melhor dizendo, neste livro estamos todos nós, camaleonicamente inseridos em fatos e pensamentos e sentimentos e desatinos supostamente alheios. Cabe ao leitor sagaz procurar-se — e encontrar-se — a si mesmo neste mosaico de espelhos.
Assim como a personagem que “sobrevive a si, um dia de cada vez”, cada estória (história?) contada é um ato de sobrevivência, pois os protagonistas compartilham com o leitor suas emoções e reflexões de maneira escancarada e mordaz, para então sumirem sem despedida, cabendo ao próprio leitor seguir em frente, sabendo que novos sentimentos de intensidades várias e valências opostas o acompanharão até o final do livro.
Em Fugas, há ainda uma camada adicional de deleite e prazer: a minuciosa escolha das palavras. A palavra pela palavra: por seu formato, pronúncia, etimologia, objetividade e subjetividade, por sua combinação com seus antônimos e sinônimos e parônimos. A palavra que condiz com o vocabulário próprio do personagem que naquele momento estiver na berlinda — mesmo quando a sentença pertencer ao narrador daquele microcosmos. A palavra pelo seu significado literal e figurativo, pelo seu impacto e sutileza. Como bem diz a mesma personagem citada ali no início: “Há quem se encante com as minhas palavras desperdiçadas.”
Este livro encantador valoriza cada palavra, como se cada uma fosse joia inestimável a compor adorno raro.