contos

Aos que perguntam

Vento me leva, inquietude me engoda a alma, e se às vezes tenho vontade lancinante de sumir, assim, sumida, de desejo de colocar pés em Marte - ou no Suriname -, é porque me falta repertório para estrear shows particulares aos órgãos competentes.

 

Não sei sambar obediência cega. Desapegar do respeito - o recebido e o concedido. Às vezes, parto de mim, porque preciso de trégua. Quando volto, inteira, com direito a todos os ângulos da minha benfazeja rotina de acolher silêncios... Antes de dizer o que - respiro fundo, depois vem o dito. Daí que abraço canções e preces. Deito-me com amores vãos e me enrosco em ciladas emocionais.

 

Às vezes, falta-me delicadeza ao engolir sapo. Descabelo-me, então vou ao cabeleireiro. Ele reclama que quase nunca apareço, enquanto sorri ao contar dinheiros; eu pronta para enfiar meus cabelos cuidadosamente ajeitadinhos debaixo do chuveiro, assim que pisar em casa. Então, chorar fascínios.

 

Às vezes, falta-me traquejo.

 

Como naqueles minutos - quase vinte e sete - que gastei anotando informações importantíssimas, definitivamente necessárias, completamente descartáveis logo que se desliga o telefone. Não adianta ligar novamente e exigir do atendente o seu tempo de volta, fornecendo-lhe o número pra lá de correto daquele protocolo pra lá de necessário. Perdeu-se... Nem mesmo foi em Málaga.

 

É bom saber que protocolos não funcionam debaixo d’água. Também não funcionam quando você necessita de amparo. Protocolos são pílulas para se domar quem anseia por resposta e reparos. É uma versão do unilateral.

 

Para falta de amparo: espargir-se. Para o excesso de zelo: rio Amazonas.

 

Há tempos em que desejo destrinchar cordilheiras, assim como beber de fontes, emocionar-me de campos e desertos. Preencher-me com esperas. Em outros, basta-me o quarto de dormir... O debaixo dos cobertores... Os sonhos inventados... Os livros de cabeceira.

 

Não raramente, coleciono pequenas loucuras, como aquela, a mais doce e menos dócil de todas. A que me leva pela mão por esse caminho acidentado das apostas. Quanto? Dez mil carinhos, duas mil mágoas, uma centelha de amor genuíno. E a brutalidade de tantos mil desapontamentos. Essa pequena loucura que se faz autora de grandes mudanças. Um dia ela ainda me levará para Calcutá, quiçá Vila Velha.

 

A senhora e seu sorriso contido pendurado em lábios secos e pálidos. Ela passa a mão pelos cabelos, tenta ajeitá-los, como se houvesse maneira de torná-los menos selvagens. Só lhe fiz uma pergunta para saber mais a seu respeito, para analisar se você está apta à vaga oferecida.

 

Ela repete a pergunta da qual dependerá se sim ou se não, se eu sirvo ou não para o trabalho oferecido.

 

Quem é você?

 

Perdoe-me, mas nunca lhe disseram? Andar por aí a fazer tal pergunta é como se colocar à disposição para receber resposta que nem sempre cabe em relatórios. Resposta que pode ser muito mais longa e complexa, porque não há quem consiga respondê-la sem enveredar por todos os cantos de si.

 

Conto a ela porque estou aqui, ofereço informações que constam na minha ficha. Falo sobre a importância de conseguir um emprego, da funcionária dedicada que sempre fui e as experiências que acumulei, sobre as buscas que pontuam minha existência profissional. Enquanto isso, dentro de mim eu ainda discorro sobre a resposta a tal pergunta.

 

Quem eu sou?

 

Sou das que, se pudesse, iria com o vento até chegar ao Saara. No deserto, plantaria meus medos e os deixaria por lá, até se tornarem cactos. Até darem flores. Até se tornarem oásis.

 

 

Conto publicado no livro O observador, pulicado em 2016 pela Editora Penalux. Clique aqui saber mais.

Desadormeça

 

É fim do mundo.

 

Muitos já encheram seus varais com roupas que não mais serão usadas, em uma última tentativa de desacreditar esse fim. Outros saíram de casa desprovidos do peso da volta, bêbados de agonia.

 

Abandonar é coisa do fim do mundo. Enlouquecer é coisa do fim do mundo. Insistir que tudo é mentira, coisa do fim do mundo.

 

Ele não corre, aos berros, exigindo que Deus conserte essa besteira de fim do mundo. Ele não folheia livros sagrados, estapeia as próprias faces, despe-se das roupas como se estivesse a se despir dos seus demônios. Ele não entra no seu carro para matar aquela vontade ilegal de correr a 200km/h no centro da cidade.

 

Ele é um ponto pacífico desfilando pelo caos. Um inseto orbitando o impossível sendo digerido pelos seus semelhantes, cada qual com sua histeria. Percebe a cadência dos seus passos? Quem se desapega da pressa durante o fim do mundo?

 

A menina chora com a violência do desamparo. Perdeu-se dos seus, bem se vê. É criança à beira do precipício, gritando pela mãe, pelo pai, pelo vizinho, por qualquer um que a reconheça. A urgência em ser reconhecida faz seu choro ecoar em amargura intrépida. Ela se debate, como se sapateasse, durante uma crise de birra de criança mimada.

 

Fim do mundo até nos faz sentir falta de birra de criança mimada. E de bobagens que, em outras circunstâncias, nos tirariam do prumo. Caso fosse possível sobreviver a esse fim do mundo, seria necessário revermos nossa capacidade de deixar para lá. De relevar e tocar em frente.

 

Ele desfila pelo fim do mundo, os braços gingando ao lado do corpo, os cabelos dançantes. Essa figura se destaca pela sua total incapacidade de perceber o fim. Aquela tranquilidade, os outros adorariam senti-la agora, porque durante o fim do mundo os barulhos são assombrosos, as vozes guturais, o silêncio não é apenas quebrado, mas é o primeiro a deixar de existir. Alguns declaram seus pecados aos estranhos que foram educados a ignorar, enquanto os abraçam em abraço que irá durar até o fim deles.

 

Durante o fim do mundo, as diferenças se perdem.

 

Ele pega a menina no colo, diz algo em seus ouvidos e ela se acalma. O mundo acabando e ele acalmando um espírito oriundo do abandono forjado pelo fim de tudo, de todos, do mundo. A menina enrosca braços no pescoço dele, deita a cabeça em seu ombro. Acalma-se ou aceita que para o fim do mundo não há jeito, trato, negociata, promessa que o revogue. Até os milagres não superam tal desfecho.

 

Não há moral da história. Fim do mundo não pede por conclusão, já que é a própria, e não sobrará pessoa que seja para debater seu significado. Mas que fica a certeza de que melhor é acabar em abraço, não há como contestar.

 

Como narrador desse sonho, posso dizer que mesmo o fim tem seus percalços. Basta um indivíduo que teime em não acreditar nele, que faça de tudo para não precisar encará-lo. Não provocar o fim é o que nos mantêm aptos aos começos e recomeços.

 

Como quem sonha esse sonho aflitivo, esse caos de fim do mundo é resumido em apenas uma palavra: saudade. A saudade que a menina, a sonhadora oficial desse fim do mundo, sente de seu irmão, aquele que é seu pai, seu provedor, seu fugitivo de fins do mundo.

 

Ele continua sua caminhada rumo a lugar nenhum. A menina começa a cantar uma canção qualquer sobre abelhas e ursos. O mundo chegando ao fim com trilha sonora pueril.

 

Ironia é coisa do fim do mundo...

 

Até que o despertador faça a sua parte.