A primeira oficina Liberte um personagem aconteceu em 2022. A proposta era para um grupo de até 5 pessoas, porque eu queria trabalhar no coletivo, mas também no individual. Ana Helena Reis, Ana Maria Rodrigues, Marina Pereira Dantas e Soraya Jordão participaram da oficina. Foi muito bacana trabalhar com essas pessoas inspiradas, que toparam a proposta e embarcaram nessa viagem de criação de personagens.
Confira um conto de cada participante dos que nasceram durante a oficina.
O final de semana prometia ser intenso. Iria me reunir com Roberto, Samanta e Maritza para decidirmos sobre as comemorações de Natal em família. Achei por bem convidá-los para a casa de praia, assim teria mais controle sobre a situação.
Samanta foi a primeira a chegar, trazendo de quebra a gata Fênix — uma vira-latas preta de olhos verdes ameaçadores —, mesmo sabendo que sou asmático. Eu a recebi com um largo sorriso e não disse uma palavra sobre o felino. Precisava de tempo para pensar em como resolver o incômodo.
Roberto chegou ostentando seu Land Rover, descarregou uma caixa de espumante e foi logo dizendo que queria um final de semana em grande estilo. Eu sabia que ele estava prestes a perder toda a mordomia, por causa da mudança de governo; que ficaria com uma mão na frente, outra atrás. Não pude deixar de dar uma agulhada. Dei uma tapinha nas suas costas e comentei: “Nada como ter parentes abonados, né Roberto?”
O quarteto fantástico ficou completo com a chegada de Maritza. Ela veio com seu furgãozinho de trabalho, e foi logo se desculpando: “Não tive tempo de retirar os equipamentos de taxidermia do carro”. Soltou uma sonora gargalhada, e então disse: “Tranquilo, pessoal Não pretendo utilizar meus instrumentos por esses dias. Imagina que vou empalhar a família!”
Todos riram amarelo, mas não estranharam. Ela tinha uma personalidade um tanto bizarra. Abri o meu melhor sorriso; o que ela disse me deu uma ideia incrível.
Os acordos a respeito do Natal transcorreram durante o jantar caprichado que eu tinha preparado. O clima era de deleite com a minha generosidade da hospedagem. De certa forma, me envaidecia a liderança que tinha sobre a família, apesar de achá-los muito cansativos.
Então, a angústia me tomou. Fênix, sentada em cima da poltrona que eu mais gostava, olhava fixo para mim.
As taças de Proseco eram entornadas rapidamente, e o teor alcoólico do grupo foi aumentando. Quando percebi que Maritza estava fora de seu autocontrole, a chamei de lado. Precisava me aproveitar de sua fraqueza.
A convenci de que ninguém notaria o sumiço da gata, já que estavam todos bêbados. “Veja bem, ela seria um exemplar magnífico para sua coleção.” O plano era trocar a água dela por bebida batizada com um pozinho que na certa a apagaria. “Vamos escondê-la no furgão até amanhã e dizer que ela e fugiu.” Em resposta, Maritza gargalhou.
Fênix não renasceu das cinzas.
Ainda me lembro de Rosa. De menina oprimida pelo pai à bailarina de cabaré. Morávamos na mesma rua. Nossas mães davam aulas de catequese na igreja, nesses dias eu ficava mais próximo da menina observadora e de pouca fala. A amizade vingou entre nós.
Rosa era luz, benfazeja com os animais. Quando os encontrava, tinha em suas mãos carinho para ofertar e alguma ração para acalmar o terror da fome daqueles anjos.
A nossa amizade se misturou ao amor do corpo, da cumplicidade, dos sonhos e, por fim, o rompimento do que seria eterno. Rosa não cabia naquela cidade, não combinava com os planos do pai e nem com os meus.
A menina das aulas de catequese e das brincadeiras, nunca mais eu vi. O paradeiro de Rosa se desfez feito fumaça rala que desaparece diante dos olhos incrédulos de quem sente amor.
Achei que morreria sem ver Rosa. Isso me fez andar arrastado, escuro por dentro, quebrado de ossos. Um pouco antes de a minha doença se agravar, fui acompanhar um primo advogado no Sul do País. Ele trabalhava em uma causa difícil, da qual outros profissionais já haviam desistido. A missão do meu primo era retirar uma moradora de uma casa que, já havia perdido em todas as instâncias da lei e se recusava a entregar o imóvel.
Quando passamos pela porta da sala, senti um perfume familiar. Na cozinha, sentada na cadeira em uma mesa de quatro lugares, uma senhora magra, sem brilho. Dizia palavras incoerentes. Seu olhar atravessado encontrou os meus. Diante de mim, Rosa, queixosa da vida e de si.
Em mais um raiar do sol, mais uma mesa posta, um café passado e o burburinho de toda manhã. Marido saído do banho faz o aroma de lavanda brigar com o do café, enquanto o barulho da louça duela com o som do despertador do quarto das crianças. Até o momento em que a cozinha é preenchida com a desordem de vozes, pedidos e chamados de mãe e amor. Nesse espaço, vou servindo uma xícara, colocando um cuscuz no prato, cheirando um quengo e tendo meu corpo escalado por algum serzinho parido por mim. Estes momentos me fazem sentir viva, com sentido e completamente preenchida.
E de ter certeza de que sou amada.
Logo depois vem o vazio. Eu: completamente oca e solitária.
Isso me traz um tremor das entranhas, um gelo como nenhum outro sentimento. Recorro ao celular, ao fogão, ao ferro; após esquentar demais, pulo para a pia, cato a vassoura e sigo para o banheiro. É o momento da chegada de todos. Volta o movimento de mesa, escalada, mãe aqui, amor acolá e eu me esparramo pelos cômodos, por cada necessidade alheia e me sinto novamente bem, inteira, preenchida. Lembro dos dizeres da minha avó: mente vazia é oficina do diabo.
Então, logo após cada um seguir com seus afazeres, ligo a TV e me ponho ao celular até o retorno de todos e o derramamento de mim. Ver aquela algazarra, aqueles rostos, perguntas e chamamentos reitera a certeza do quanto sou amada, querida, completa e sigo fielmente os caminhos de Cristo.
A família é a base de tudo. É para ela e por ela que existo. Minha fé, minha santinha... Tenho que lembrar de trocar as flores do altar, comprar velas e um terço novo. Falando nisso, hoje sai o resultado do Enem de João. Fico feliz por meu filho seguir seu caminho e ao mesmo tempo temo pelo vazio dessa casa. Meu marido vive trabalhando, passo o dia só, e o que me entretém são as horas de aperto. Ainda assim, ver meu filho formado, um doutor, é algo de muito orgulho para uma mãe.
Seria bom para ele sair dessa cidade. Mesmo assim meu coração fica miúdo e vai bater dentro dessa casa tão grande, sozinho. Tem meu marido, é fato, sendo que é aquela coisa: de casa para o trabalho, do trabalho para casa; em casa é na TV, cerveja e celular. Não estou reclamando, sabe? Até porque tem gente em situação pior e eu vivo por minha família. Mas um passeio não faz mal a ninguém, anima o espírito. O padre mesmo, ele sempre bebe o sangue de Cristo. Um goró aqui outro acolá, é bom, faz bem pra alma. Pena que meu marido ficou velho e abusado, sai com os amigos e é isso. Eu fico aqui, locada como móvel. Não reclamo não, é meu dever, minha escolha, minha família, eu apenas quero parar esses tremores pelo corpo.
É bom esse quentinho, faz eu me sentir viva, sabe? Eu me empenho tanto por eles e agora vou ser deixada? Ficar só eu e o velho. Gosto não, gosto do agito. Ah! Quando eu era nova, não tinha isso, batia alguns forrós, fui candidata em concursos de beleza, organizei grupo de jovens e sempre tinha algo para fazer.
Tudo que tenho vai embora. Tanta dedicação e agora ficarei aqui, presa. Faço e fiz tudo por ele e agora simplesmente vai embora, me deixar com esse bode velho. Por outro lado, ao menos é para virar doutor, alguém importante. Só conseguiu porque eu cuidava de tudo. A vitória seria minha também, mas a distância é o que prejudica.
De toda forma, ele ainda não passou.
Conheci Pessoa numa noite de mágoa. Adentrei naquela casa escura para beber e amaldiçoar cada fêmea nascida nesse mundo. Sentei à mesa escondida entre o banheiro e o bar. Achei que dali não seria visto e estaria à vontade para cumprir minha intenção. De súbito, uma ideia se instalou: ali era o lugar perfeito para traçar meu plano de vingança.
Quando busquei o garçom com o olhar, descobri ser visto antes mesmo de ver. Encostada na parede, olhos brilhantes e sorriso amarelado, estava Pessoa. Observadora, paciente e rasteira feito cobra. Foi se aproximando, deslizando os passos no carpete como se estivesse em chão ensaboado. Tentei desviar o olhar e impedir o bote. Tarde demais. Uma mulher desafiadora, não recua, salta.
Sentou-se do meu lado, com uma das mãos tocou minha perna, com a outra estalou o dedo e pediu a cerveja e dois copos. Antes de qualquer negativa, me disse na entrada do ouvido:
— Essa é por minha conta.
Safada, ordinária, vagabunda, se fazendo de benfazeja para daqui a pouco me roubar até as calças. Essa escrota não sabe que estou calejado de piranhas. A última foi Adelaide, mas essa que aguarde o retorno.
— Como você se chama?
— Pessoa.
─ Ninguém se chama Pessoa.
─ Quando a gente é tratado feito bicho, se chamar Pessoa é um lembrete.
Conversamos a noite toda. Tenho voltado lá todos os dias. Entrego tudo que ganho por essas horas, mas dessa vez é diferente. Pensei se tratar de cobra, mas ela é camaleônica. Na capa dura da pele, carrega um perfume de flor.