Arqueologia da fragilidade usual

Whisner Fraga

Há um trovejar de quimeras desmoronando, texto a texto, nas cinco partes deste livro imenso. Carla Dias disseca a anatomia da solidão, sem dar trégua aos personagens concebidos e curtidos no sal de tormentos e de devaneios.

 

Escritores elegem seus temas preferidos e deles não se desvencilham vida afora e é muito bom que não alforriem esses assuntos. Nesta obra é retomada a ideia da individualidade, em suas inúmeras nuances. Há nos minicontos (peço permissão para chamar cada narrativa de miniconto ou de minicrônica) uma liberdade avançando sobre os estragos do cotidiano, algo que não percebia nos outros trabalhos de Carla e isso não significa estarmos diante de uma carpintaria melhor ou pior, apenas diferente, e um artista se benze nessas metamorfoses, mesmo.

 

Há muita tragédia nas histórias e não devemos nos prender ao encantamento dos sofreres, pois é nítido que todos se banham também na água consagrada da pia batismal da esperança, entremeada de sonhos e, sobretudo, de silêncios. São as pausas presentes no título. Não basta fugir, é necessário se misturar ao vazio para subjugar a si próprio e ao íntimo, comumente traiçoeiro. As pessoas estão armadas de desvarios na peleja contra o julgamento do outro e, pior, contra as etiquetas de fontes gravadas pela tinta da imprecisão. Devem se submeter a arbitramentos, desde a infância até sabe-se quando?

 

Primeiro há a manufatura do indivíduo, amálgama do lirismo coletado da realidade com os exageros do imponderável, sujeito comprimido pela crueza de tradições que não ultrapassam o próprio passado e é refém de longevas intolerâncias. A menina rejeita o cárcere, porque tudo é inédito e pronto para ser desvendado, o homem, inicialmente austero, cede à urgência da aceitação, a mulher, estrangeira, deslocada, ensina a domar os sentidos, a derrubar estorvos, a sobreviver,

 

e a mulher é mais do que uma mulher, o homem mais do que um homem

e a criança mais do que uma criança: são todos gestações.

 

Depois, a melancolia, a miséria camuflada, a identidade, o respeito aglutinado nos relacionamentos, ainda se qualquer abismo só pretenda ecos. O alheio é longe, embora a caminhada até lá permita o vislumbre de alguma fagulha, de alguma clareira e daí brote a negligência essencial à consciência do encontro, um descobrimento obstinado de vozes, de relances buscando a harmonia, o pacto.

 

Mais tarde, a colheita, na serenidade ensurdecedora do que se cala. Nos deparamos com desencantos, artimanhas, um medo desembocando em todos os despovoados, a imposição de mixarias que se encaixam em detalhes e a soma de ressentimentos molda a impotência. Neste ponto, ninguém fareja o rancor comprimindo a soberania de ímpetos nem aventa o risco em atos persuasivos, habitualmente conhecidos por inveja. Adultos, procuram a terra em que abandonaram o elo, aludem regressos, entretanto o tempo, confinado em etimologias matemáticas, lhes nega a petulância: a volta é improvável. Crescidos, para driblarem a lógica, engendram subterfúgios, pois quem agrilhoa a memória?

 

A lembrança é um cão salivante acossando limites.

 

Enfim, a subordinação: o corpo se divide em inocência e em amor. Em debandada e em persistência. Frente à impossibilidade de se conciliar com o desabitado, com o fútil, com o dispensável, com o insignificante, o desejo se reduz a uma degenerescência guarnecida por enganos. É aí que a escritora deposita o paradoxo: não há ajuste possível, há somente um ânimo para novos esforços, resultando em miragens, retroalimentando réplicas do irreal, na tentativa de abrandar todos os desertos.